Manual / Ciência e picaretagem
Ciência e picaretagem
Richard Dawkins, citando um editor da New Scientist.
No distante século XX, muita gente sofria de úlcera. Não só
a doença era um incômodo permanente, mas também os doentes tinham dietas bem
restritas e tomavam remédios diários. Para os médicos, as causas da doença eram
o estresse e a alimentação inadequada. Na década de 1980, os médicos Gary
Marshall e Robin Waren suspeitaram que a causa poderia ser uma obscura
bactéria. Como ninguém acreditava nos pesquisadores, Gary tomou uma atitude
radical (e nojenta): tomou um potinho cheio da bactéria suspeita. Bem rápido,
ele ficou com uma úlcera horrorosa. Antibióticos o curaram. Em 2005, Gary e
Robin ganharam o Nobel de Medicina.
Esse é um bom exemplo do sucesso da ciência. Parece até um
filme ruim de Hollywood, mas é uma história real que está de acordo com os
sonhos dos cientistas. Gary e Robin tinham uma hipótese que a comunidade
científica repudiava, bolaram um teste que poderia mostrar que eles estavam com
a razão e acabaram convencendo todo mundo.
Mas será que todo campo científico se encaixa nessa
metodologia? Bem, vamos lá. O filósofo da ciência, Karl Popper – o mais
influente do século XX – afirmava que hipóteses científicas são aquelas
que podem ser mostradas como falsas. Se não houver jeito de mostrar que são
falsas, então, não é ciência, é picaretagem. Por exemplo: uma cartomante que
diz que a leitura só funciona quando o cliente tiver fé nunca pode ser
desmascarada. Quando errar, ela sempre pode culpar o cliente. Um "cientista"
que não tem uma hipótese testável ou arruma sempre um desculpa, sempre terá
razão, assim, ganhará a discussão. Mas uma vitória em um jogo em que é
impossível perder não é vitória.
Em outras palavras, na visão de Popper, uma ciência empírica
deve formular hipóteses falseáveis. Deve existir a possibilidade de suas
hipóteses se mostrarem falsas. "Amanhã acontecerá um eclipse do sol às 13h",
é uma das coisas mais fáceis do mundo de testar.
Já as afirmações "Pena de morte para estupradores reduz
o crime" ou "Vitamina C prolonga a vida" são testáveis, mas
tremendamente mais complicadas de testar do que as hipóteses mais simples.
Muitas outras coisas influenciam a criminalidade e a longevidade, sendo muito
difícil determinar a causalidade. Em tese, os estupradores podem matar mais
mulheres para que tenham menos testemunhas. Pessoas que tomam vitaminas podem
ser mais cuidadosas com a sua saúde, ou mais ricas que as demais. Mesmo assim,
ambas as afirmações são científicas porque podem, ao menos em princípio, serem
testadas e mostradas falsas.
Já afirmações como "deus nos ama", "os sonhos
são expressões do inconsciente" ou a "a luta de classes é o motor da
história" não são Científicas com C maiúsculo. As pessoas que acreditam na
veracidade delas não podem (e nem querem!) propor testes de suas hipóteses.
O físico Carl Sagan conta uma história que ilustra bem esse
problema das afirmações não falseáveis. Um sujeito conta para um cientista que
tem um dragão vivendo na garagem. O cientista diz: "Ótimo? Vamos lá ver".
Aí o maluco diz: "É, mas ele é invisível!". O cientista replica: "Sem
problemas, vamos jogar farinha no chão da garagem para ver as pegadas". E
o doido: "Pena que o dragão só voa". Aí o cientista continua: "Vamos
jogar tinta no ar!". Resposta: "O dragão é feito de um material cuja
tinta não adere...".
Para cada proposta de testar a hipótese "existe um
dragão na garagem", o maluco (ou picareta?) vinha com uma saída que
tornava impossível testá-la. O cientista foi incapaz de provar que o dragão não
existe, mas de forma nenhuma isso prova que o dragão está lá. Exatamente o
contrário é verdadeiro. Uma hipótese passível de refutação é simplesmente não científica.
Chame a polícia ou o hospício.
Um ponto importante na visão popperiana é que você só pode
falsear ou deixar de falsear uma teoria. Por mais observações que estejam de
acordo com a sua hipótese, não há como ter certeza de que se está sempre certo.
Pode ser que as hipóteses sejam válidas só em algumas situações e não em
outras. Veja a Física que aprendemos no ensino médio. Aquelas leis de Newton
funcionam em um monte de situações. Além de lhe tirarem o sono na véspera da
prova, as leis servem para calcular quantas horas vai demorar uma viagem, ou a
trajetória aproximada de um tiro de canhão. Agora, as leis perdem o sentido
quando tratamos do muito pequeno, ou do muito rápido. Não é que o velho Newton
errou no sentido trivial do termo, mas apenas que a sua teoria tem limites de
validade. Dr. Einstein e cia. tiveram de vir em socorro e ampliaram o objeto da
Física.
Por mais que se tenha evidências de que uma hipótese
científica é verdadeira, nunca se pode bater o martelo em favor de uma teoria. Só
dá para bater o martelo "contra" uma teoria. Nunca a favor. Corte os
termos "prova", "comprova" e "verifica" de seu
vocabulário. Você só consegue não falsear uma hipótese. Existem profundas
explicações de Filosofia da Ciência para isso, mas, por enquanto, basta você
assumir a humildade científica. Lembre-se que o ser humano não passa de um
macaco ridículo, medroso, em um pedaço de terra que gira ao redor de uma estrela
irrelevante. Achar que você entendeu uma lei definitiva da natureza ou da
sociedade seria muita pretensão.
Tem gente que diz que a psicanálise estaria no mesmo nível
da cartomancia: afinal, qualquer coisa que aconteça pode ser explicada por um
analista hábil. A psicanálise, junto com boa parte da Antropologia, não tem
hipóteses testáveis. O negócio é interpretar os eventos dos indivíduos e das
sociedades. São ciências interpretativas que não fazem previsões. Esses campos
almejam dar sentido às coisas. Quando um antropólogo vê cerimônia em uma ilha
perdida do pacífico, ele tenta entender qual o papel daquele ritual, interpretá-lo.
Por mais que eu seja fã da visão popperiana, penso que as
antropologias ou as psicanálises da vida não devem ser rotuladas como não
científicas. Tudo bem que elas não apresentam hipóteses falseáveis. Julgá-las
pelas métricas da Física ou da Medicina seria maldade e rotulá-las como não científicas
seria perder um tanto do conhecimento humano. Elas são outro tipo de ciência e
só.
Manual de sobrevivência na universidade: da graduação ao pós-doutorado
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